“Você
não sabe o que é fome”, dizia sempre minha mãe quando eu reclamava – com a
força da exagerada expressão “morrer de fome” – como todos nós fazemos quando
precisamos comer. Naqueles meados dos anos noventa, ela sabia, também pelos
telejornais, que a situação não era fácil em várias partes do país. Eu,
criança, zero. Formávamos uma família simples de interior e o trabalho de
marceneiro que meu pai conquistara há anos na Embrapa garantia o sustento da
casa. Minha mãe costurava para fora e cuidava do lar. Cuidava de seis filhos inclusive,
pois a televisão chegou tardiamente em nossas vidas e sua influência só
interrompeu a natalidade gerada pela dona Lourdes e pelo senhor Afonso em 1993.
Uma
vez reclamei que não havia nada para comer em casa. Minha mãe respondeu dizendo
que as panelas estavam cheias de arroz com feijão, bastava esquentá-los. Não me
dei por satisfeito e disse que iria dormir para que talvez a fome passasse.
Deitei-me. Mas segundos depois, junto de
uma coça que eu nunca havia experimentado, fui tocado da cama à base de gritos
vociferando contra o despautério que eu acabara de dizer. “Tem gente no
nordeste que está comendo cactos fervido, meu filho! Como você tem coragem de
dizer isso?!”. O que eu não sabia era que nosso arroz e feijão, perto do que
muitas pessoas comiam, com certeza ali perto de nós mesmos, eram iguarias e
minha mãe sabia tê-las conquistado com dificuldade e trabalho pesado. A fome ainda
era comum naquela época e eu não sabia o que era a fome. Meus pais, um dia,
talvez souberam.
Diariamente,
andavam durante horas da zona rural até chegar à escola no pequeno município de
Tabuleiro. Meu pai estudou até a oitava série e minha mãe até a quarta. Minhas
irmãs tentaram vestibular numa época em que frequentar uma faculdade era
privilégio de poucos, sendo que os estudantes oriundos de escola pública,
poucas chances tinham. Era preciso trabalhar, antes de tudo, e sobreviver numa
cidade maior. Mas dona Lourdes sempre acreditou na escola. Talvez a proibição
de meu avô, que a impediu de prosseguir os estudos ainda muito nova, fizesse
com que ela depositasse na figura do professor um respeito que os pais de hoje há muito
esqueceram.
Minha
mãe tanto acreditou na escola que intercedeu, junto ao meu pai, quando aos treze anos implorei para estudar num colégio particular. Dito e feito. Pulo,
entretanto, os floreios adolescentes para dizer que sempre pensei na docência
como profissão, mas esse desejo ficou estacionado, por anos, inclusive durante
a faculdade de Letras. Obviamente, nossa percepção de mundo vai mudando e
qualquer discurso de formatura diz isso com palavras bem mais elaboradas que as minhas.
A
educação de nosso país ela é hoje diferente: melhor em muitos aspectos, com a criação
de diversas universidades e escolas técnicas (só não estuda quem não quer!); problemática
em diversos outros, como a educação básica; e desoladora quando presenciamos
professores sendo espancados nas ruas porque lutam por um salário digno, ou
porque os pais depositam na escola a responsabilidade por toda a educação dos
filhos, citando apenas dois de inúmeros exemplos. Não há quem suporte essa situação.
Quanto à fome, a informação é de que ela foi superada na maior parte do país.
Isso é bom, isso é ótimo! Mas para quem não pensa só no umbigo – precisamos olhar o mapa da fome no mundo –, não existe motivo para nos gabarmos diante dos outros.
É necessário, pois, vislumbrar um país melhor, com educação de qualidade e
comida na mesa. Eu e minha mãe nunca pensamos que isso poderia acontecer. Ela,
no auge de sua quarta série. Eu, no auge do meu otimismo doutorando. Ela
infelizmente não é mais testemunha da mudança, mas eu o sou e acredito que
podemos mais.
A massa não vai tirar a massa da nossa mesa!!
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