terça-feira, 4 de novembro de 2014

Whisk and Bowl

Quando ela disse "Vai por mim, meu nego,
a vida enguiça, o corpo trinca só"
naquela tarde de verão, de móveis
a emprestar seu turbilhão de pejo
a seis sofistas moribundos loucos,
devia ouvir a sua imunda orgia
vocabular e esparzir tranquila
e cavalar dose de azia moura
na cara torta que ela faz pra mim.
Que mulherzinha mais chinfrim e azeda!
Só porque bebo, porque fumo, sim,
todas as noites e estou velho e trouxa
e o escambau, não vou passar por besta
co'essas ideias ressentidas, frouxas.

    José Malhoa, Os bêbedos, 1907

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Lição pela fome

“Você não sabe o que é fome”, dizia sempre minha mãe quando eu reclamava – com a força da exagerada expressão “morrer de fome” – como todos nós fazemos quando precisamos comer. Naqueles meados dos anos noventa, ela sabia, também pelos telejornais, que a situação não era fácil em várias partes do país. Eu, criança, zero. Formávamos uma família simples de interior e o trabalho de marceneiro que meu pai conquistara há anos na Embrapa garantia o sustento da casa. Minha mãe costurava para fora e cuidava do lar. Cuidava de seis filhos inclusive, pois a televisão chegou tardiamente em nossas vidas e sua influência só interrompeu a natalidade gerada pela dona Lourdes e pelo senhor Afonso em 1993.

Uma vez reclamei que não havia nada para comer em casa. Minha mãe respondeu dizendo que as panelas estavam cheias de arroz com feijão, bastava esquentá-los. Não me dei por satisfeito e disse que iria dormir para que talvez a fome passasse. Deitei-me.  Mas segundos depois, junto de uma coça que eu nunca havia experimentado, fui tocado da cama à base de gritos vociferando contra o despautério que eu acabara de dizer. “Tem gente no nordeste que está comendo cactos fervido, meu filho! Como você tem coragem de dizer isso?!”. O que eu não sabia era que nosso arroz e feijão, perto do que muitas pessoas comiam, com certeza ali perto de nós mesmos, eram iguarias e minha mãe sabia tê-las conquistado com dificuldade e trabalho pesado. A fome ainda era comum naquela época e eu não sabia o que era a fome. Meus pais, um dia, talvez souberam.

Diariamente, andavam durante horas da zona rural até chegar à escola no pequeno município de Tabuleiro. Meu pai estudou até a oitava série e minha mãe até a quarta. Minhas irmãs tentaram vestibular numa época em que frequentar uma faculdade era privilégio de poucos, sendo que os estudantes oriundos de escola pública, poucas chances tinham. Era preciso trabalhar, antes de tudo, e sobreviver numa cidade maior. Mas dona Lourdes sempre acreditou na escola. Talvez a proibição de meu avô, que a impediu de prosseguir os estudos ainda muito nova, fizesse com que ela depositasse na figura do professor um respeito que os pais de hoje há muito esqueceram.

Minha mãe tanto acreditou na escola que intercedeu, junto ao meu pai, quando aos treze anos implorei para estudar num colégio particular. Dito e feito. Pulo, entretanto, os floreios adolescentes para dizer que sempre pensei na docência como profissão, mas esse desejo ficou estacionado, por anos, inclusive durante a faculdade de Letras. Obviamente, nossa percepção de mundo vai mudando e qualquer discurso de formatura diz isso com palavras bem mais elaboradas que as minhas.

A educação de nosso país ela é hoje diferente: melhor em muitos aspectos, com a criação de diversas universidades e escolas técnicas (só não estuda quem não quer!); problemática em diversos outros, como a educação básica; e desoladora quando presenciamos professores sendo espancados nas ruas porque lutam por um salário digno, ou porque os pais depositam na escola a responsabilidade por toda a educação dos filhos, citando apenas dois de inúmeros exemplos. Não há quem suporte essa situação. Quanto à fome, a informação é de que ela foi superada na maior parte do país. Isso é bom, isso é ótimo! Mas para quem não pensa só no umbigo – precisamos olhar o mapa da fome no mundo –, não existe motivo para nos gabarmos diante dos outros. É necessário, pois, vislumbrar um país melhor, com educação de qualidade e comida na mesa. Eu e minha mãe nunca pensamos que isso poderia acontecer. Ela, no auge de sua quarta série. Eu, no auge do meu otimismo doutorando. Ela infelizmente não é mais testemunha da mudança, mas eu o sou e acredito que podemos mais. 

terça-feira, 1 de abril de 2014

Sonetilho para (quase) entrar nos 27

Mesmo eu já saindo da mocidade, 
só tenho feito produções incultas
nessa vida de cantante, que sabe
muito do tosco, pouco sobre o cool.

Tentei em vão caetanear a vida,
mas me pegou a disfunção erétil
e retrocedi. Olha que patético
o que aconteceu a mim: não deu liga

aquela história de receita mínima
sobre o muro, pedindo poesia.
É lindo Leminski, é lindo Lenine,

diz a página da louca imbecil.
Ela não leu, olha só, quem diria,
entretanto uma linha do que viu.