quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Pequeno manifesto da poesia sem gracejo

Será preciso dizer que somos jovens, desatentos e apaixonados? Disso se encarregarão os velhos e suas corcundas de milênios de cultura nas costas, tenham eles vinte ou setenta anos. E algum cheiro de mofo.  Firulas sem propósito, sem proposta, fogo brando, dirão.  A eles talvez não importe o que estamos falando. Mas a nós importa, assim como a quem mais se interessa pela distração adolescente e pela ingenuidade declarada. Pois carregamos uma herança, talvez desde a baixa modernidade, uma herança de uma sociedade em crise. Crise disso, crise daquilo. E enquanto nos debatemos, as telas de computadores e TVs pasteurizam Macabéa, Riobaldo, álvaro de Campos, Manu Bandeira e Marionaíma. E vêm nos falar que deixemos de criancice? Seria interessante abrir mão da poesia que é chamada de poesia só porque querem chamá-la poesia? Ou da poesia de subgêneros e subclasses publicadas a esmo em pastas e links na internet? Convivência de sorrisos amarelos. De samba bom, samba ruim. Do poeta eternamente em crise porque sofreu bulling e não sabia o que era isso. A poesia precisa se libertar das neuroses e ser menos egoica querendo ser heroica. Precisa ser voz de quem a tem como uma forma de vida e como criação desta, sem forçação, ou pseudagem, sem ser através de intervenções obsoletas em chiqueiros estudantis, levantando vários exemplares do deus do labirinto com palavras de ordem, compilando os melhores comentários do companheiro Acácio greatest hits. Poesia manifesto é caô pra liberdade, mas precisa-se dela em momentos de abismo. Não é se colocar em zona de conforto por vaidade artística, mas por saúde e paixão. Tirar a poesia da doença, poesia fazendo hemodiálise, mas permitir a poesia de influência e angústia freudiana, sem aspas, que se permite a calóricos adjetivos. Por que não¿ Estamos no limbo à caça das palavras, não é mesmo¿ A poesia que enfia só a cabecinha e fecha tudo em três vezes sem entrada. Geral segue sua nau. Criação de filhos monstruosos. Poesia como criação de imagens sem embasamento teórico, sem socar a teoria na poesia. Pelo poeta sem calmantes e leviandade intelectual, pelo poeta clichê-boêmio, que tem o direito de ir pra seu castelo emendar alexandrinos pra posteridade, pois uma hora ele desce de lá. Em proveito do poeta filósofo letrado desde criança, sempre são danadinhos e espertos esses; o poeta modernete, o poeta do rap, o deleuzeano, o roseano, a claricete, o camelete, o loser, o mano, um monte de zumbis da Ana Cristina César caminhando pelos corredores, o poeta do grafite no muro da escola e os sérios e respeitosos que discutem em reuniões exclusivíssimas. Com todos a gente aprende alguma coisa, embora torcemos o bico com uma atitude ou outra, uma rima pobre ali ou uma disritmia acolá. Poesia concreta? De pau a pique. Cheia de goteiras. Poesia furo pra tudo quanto é lado. Quando um autor encarna na pele alheia e faz daquele poeta sair emulando deus e o povo, digo, emulando os autores, eles que estavam mortos desde que declaram sua morte, mas aparece hora ou outra em vídeos duvidosos afirmados pelo fantástico. Sem medo das apóstrofes, o poeta não se reprimirá, mesmo sem saber as respostas, mesmo sem saber direito o que é poesia, a escola do mundo os ensinará, nossas mães estavam certas. A persistência também ensina, o trabalho, a transpiração e as inspirações que, igualmente, é importante não desacreditar delas enquanto marcas deixadas diariamente em nosso corpo. Mas a convivência entre tudo jamais deve ser pacífica e de mão beijada. Palavras como máquinas de guerra. Uma anarquiazinha não dói. Poesia, meu caro, é arte injusta e cruel, assim como o teatro, assim como a música, injustas artes em que todos acham que podem fazer. Pela poesia servente de pedreiro, que trabalha e observa o companheiro. Aprende a mexer na massa, manejar as ferramentas, calcular precisões sem intenções arquitetônicas. Poesia pra se odiar Fernando Pessoa e deixar a sofisticação cabralina pra depois, sem precisar queimá-los em praça pública. Poesia também caixa de brinquedos. Poesia que toca Raul, toca Faulhaber, Tafuri, Basílio, Augusto, Fonseca, Neto e Leocárdio. A poesia é mara, o poeta é belza, coisas que inventamos. Por todos aqueles que beberam uísque com gelo da ponta do iceberg, todos aqueles que conheceram o segredo da Jurema, a cal de Rebeca e o pau do índio. Contra corrente da conta corrente cartesiana e mal paga. Contra esses comportamentos que nos fazem pender para as coisinhas, as fofoquinhas e os risinhos, a mediocridade das disputas paroquiais na busca pelas melecas de ouro dos poetas federais. Cara de paisagem pra discutir essa linguística dura, essa ciência que nos chama e pedimos só mais cinco minutos de sono. Preferimos uma ode a quatro mãos nos encontros tediosos, uma anti-ode solitária cagada após o big brother, três ou quatro poemas-piada (na verdade, muitos), uma epopeia sem tema, dois sonetos rimados no fundo da gaveta e um de verso livre aspirante a Claro Enigma. Poesia em processo, poesia em formação. Devir, de-vir . Que não debulha dicionários em busca da melhor opção. Poetas-Chico sem canção. Ou que rimam amor e dor na cara dura sem se tornar poesia xexelenta, dos poetas que leem um livro e ficam se achando na comunidade e nos fóruns de discussão. A favor da poesia panfleto, dessas de explodir a ilha de Manhattam ao som de Rage Against the Machine. Poesia não-sei-nem-o-que-é-que-tá-acontecendo-lá-fora-e-não-me-venham-com-esse-papo-de-alienação. Poesia pra beijar a mão do crítico cinzento e dizer que se ele falar bem do nosso livro nos sentiremos na obrigação de não recomendá-lo a ninguém. Nem o crítico nem nosso livro. Poesia fetiche. Ter o livro impresso em casa e gritar: é meu!
             Poesia palavra
             Poesia deslocada
             Poesia mutilada
             Poesia outro
             Poesia esmola
             Poesia deixou
             Poesia hora
             Poesia século
Poesia quando abaixamos a tevê e continuamos ouvindo a música da novela no vizinho. Poesia saiu do estado é outro país. Poesia virou a casaca, pegou birra, uó! Poesia que só hoje bateu o recorde esperado para o mês. Poesia com margem de erro de dois pontos percentuais para mais ou para menos. Poesia que antropofagiza os mortos por enchentes entrevistados no jornal nacional. Poesia que, por uma questão ética, politiza a imagem do homem torturado na faixa branca da bandeira, com todo o terror dessa imagem, e denuncia a tinta no mesmo homem a fim de que comece o carnaval. Poesia que não vai à missa do fulano na quarta-feira só para aqueles que deus deixou entrar nas igrejas. Poesia anti-gemido inefável. Anti-espírito. Anti-luz. Anti-vento só por ventar. Anti-canto gregoriano que parece ter vindo do quinto dos infernos. Poesia que fomenta ódio à tentativa de ódio ao ódio à poesia. Poesia que assume ser estilo de época e poesia que assume ser equívoco de época. Subproduto da primeira contracultura com orgulho de bater no peito, aquela romântica! Poesia provisória, claro. Pra se fazer agora e rasgar amanhã, ou pra se guardar no fundo da gaveta e só tirar quando nos esquecermos dela e, aí sim, ela se tornar poesia potente. Pra acreditar piamente no que diz sem ter que pensar em qualquer justificativa que torne a poesia boa ou ruim, pra esfregar na cara da mocinha de nariz em pé, mas com ternura e perdão, feito um doce bárbaro. Pra terminar o verso e mandar pr’O Poeta, pra ler no Eco e massagear o ego, pra ser musicado por Edson Leão, pra ser desdobrado por André Monteiro e pra ser indicado pelas Scher. Assim fazemos poesia. Menos aborrecimento, mais amizade. Por escolha e por imanência. Mas com inclinações pra Álvares de Azevedo, Rimbaud, Verlaine ou Jovita. Mesmo que depois abandonemos essa forma, cresçamos enfim, aprendamos alguma coisa com os sabichões, deixemos de ser camelos e passemos a leões ou crianças, com a alegria inocente e a mais viva das poesias, sem medo de morrer aos vinte e sete ou nos tornar nossos próprios heróis que não morrerão de overdose.

    Juiz de Fora, Junho de 2011. 

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Whisk and Bowl

Quando ela disse "Vai por mim, meu nego,
a vida enguiça, o corpo trinca só"
naquela tarde de verão, de móveis
a emprestar seu turbilhão de pejo
a seis sofistas moribundos loucos,
devia ouvir a sua imunda orgia
vocabular e esparzir tranquila
e cavalar dose de azia moura
na cara torta que ela faz pra mim.
Que mulherzinha mais chinfrim e azeda!
Só porque bebo, porque fumo, sim,
todas as noites e estou velho e trouxa
e o escambau, não vou passar por besta
co'essas ideias ressentidas, frouxas.

    José Malhoa, Os bêbedos, 1907

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Lição pela fome

“Você não sabe o que é fome”, dizia sempre minha mãe quando eu reclamava – com a força da exagerada expressão “morrer de fome” – como todos nós fazemos quando precisamos comer. Naqueles meados dos anos noventa, ela sabia, também pelos telejornais, que a situação não era fácil em várias partes do país. Eu, criança, zero. Formávamos uma família simples de interior e o trabalho de marceneiro que meu pai conquistara há anos na Embrapa garantia o sustento da casa. Minha mãe costurava para fora e cuidava do lar. Cuidava de seis filhos inclusive, pois a televisão chegou tardiamente em nossas vidas e sua influência só interrompeu a natalidade gerada pela dona Lourdes e pelo senhor Afonso em 1993.

Uma vez reclamei que não havia nada para comer em casa. Minha mãe respondeu dizendo que as panelas estavam cheias de arroz com feijão, bastava esquentá-los. Não me dei por satisfeito e disse que iria dormir para que talvez a fome passasse. Deitei-me.  Mas segundos depois, junto de uma coça que eu nunca havia experimentado, fui tocado da cama à base de gritos vociferando contra o despautério que eu acabara de dizer. “Tem gente no nordeste que está comendo cactos fervido, meu filho! Como você tem coragem de dizer isso?!”. O que eu não sabia era que nosso arroz e feijão, perto do que muitas pessoas comiam, com certeza ali perto de nós mesmos, eram iguarias e minha mãe sabia tê-las conquistado com dificuldade e trabalho pesado. A fome ainda era comum naquela época e eu não sabia o que era a fome. Meus pais, um dia, talvez souberam.

Diariamente, andavam durante horas da zona rural até chegar à escola no pequeno município de Tabuleiro. Meu pai estudou até a oitava série e minha mãe até a quarta. Minhas irmãs tentaram vestibular numa época em que frequentar uma faculdade era privilégio de poucos, sendo que os estudantes oriundos de escola pública, poucas chances tinham. Era preciso trabalhar, antes de tudo, e sobreviver numa cidade maior. Mas dona Lourdes sempre acreditou na escola. Talvez a proibição de meu avô, que a impediu de prosseguir os estudos ainda muito nova, fizesse com que ela depositasse na figura do professor um respeito que os pais de hoje há muito esqueceram.

Minha mãe tanto acreditou na escola que intercedeu, junto ao meu pai, quando aos treze anos implorei para estudar num colégio particular. Dito e feito. Pulo, entretanto, os floreios adolescentes para dizer que sempre pensei na docência como profissão, mas esse desejo ficou estacionado, por anos, inclusive durante a faculdade de Letras. Obviamente, nossa percepção de mundo vai mudando e qualquer discurso de formatura diz isso com palavras bem mais elaboradas que as minhas.

A educação de nosso país ela é hoje diferente: melhor em muitos aspectos, com a criação de diversas universidades e escolas técnicas (só não estuda quem não quer!); problemática em diversos outros, como a educação básica; e desoladora quando presenciamos professores sendo espancados nas ruas porque lutam por um salário digno, ou porque os pais depositam na escola a responsabilidade por toda a educação dos filhos, citando apenas dois de inúmeros exemplos. Não há quem suporte essa situação. Quanto à fome, a informação é de que ela foi superada na maior parte do país. Isso é bom, isso é ótimo! Mas para quem não pensa só no umbigo – precisamos olhar o mapa da fome no mundo –, não existe motivo para nos gabarmos diante dos outros. É necessário, pois, vislumbrar um país melhor, com educação de qualidade e comida na mesa. Eu e minha mãe nunca pensamos que isso poderia acontecer. Ela, no auge de sua quarta série. Eu, no auge do meu otimismo doutorando. Ela infelizmente não é mais testemunha da mudança, mas eu o sou e acredito que podemos mais. 

terça-feira, 1 de abril de 2014

Sonetilho para (quase) entrar nos 27

Mesmo eu já saindo da mocidade, 
só tenho feito produções incultas
nessa vida de cantante, que sabe
muito do tosco, pouco sobre o cool.

Tentei em vão caetanear a vida,
mas me pegou a disfunção erétil
e retrocedi. Olha que patético
o que aconteceu a mim: não deu liga

aquela história de receita mínima
sobre o muro, pedindo poesia.
É lindo Leminski, é lindo Lenine,

diz a página da louca imbecil.
Ela não leu, olha só, quem diria,
entretanto uma linha do que viu.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

ainda

ainda não consigo dizer nada
ainda não consigo dizer nada sobre violência 
ainda não consigo dizer nada sobre violência contra 
                                       [professores
ainda não consigo dizer
ainda

sobe um frio na espinha
sobe um frio na espinha só de pensar
sobe um frio na espinha só de pensar na violência
sobe um frio na espinha só de pensar na violência contra                                                 [professores
sobe

enquanto assistimos nossa novela
enquanto assistimos nosso filme
enquanto lemos nosso livro
nada nos escapa
nada é imune, meu bem

os professores
os professores estão sendo
os professores estão sendo espancados
os professores estão sendo espancados por policiais


e o testemunho pânico das retinas entala em nossas guelas

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Renúncia

mão que roça o cabelo
perna que laça o pêlo
pêlo da outra perna
cabelo pro suor pingar
grito quente que não quer matar
mão que arranha a pele
lábio que no dente preso
mira o outro queixo ileso
contra a nuca que não se fere
pronta a não se perfurar

olho que evita o olho
tato que é de fato
certo e concreto
fúria
do corpo duplo
que a alma
não quer
entre-
gar
.



 

terça-feira, 27 de agosto de 2013

De um susto pela internet

A linguagem é mesmo um fenômeno incrível. No Facebook, por exemplo, a gente sempre vê alguém postar: partiu balada, partiu cama, partiu cinema, etc. Hoje, li uma construção incrível de uma adolescente: partiu sentir saudades. Não é genial isso? Agora nossos sentimentos também são lugares para onde nos encaminhamos. Se você for beber hoje, já pode se antecipar e colocar: partiu ressaca. Se você for terminar com seu namorado, basta dizer: partiu depressão. Mas o "partiu sentir saudades" me conquistou. Para todas as viagens longas ou mesmo curtas, para todas as despedidas, para todo o saudosismo, estamos sempre partindo, mesmo que não exista nenhum caminho físico a percorrer.