Será
preciso dizer que somos jovens, desatentos e apaixonados? Disso se encarregarão
os velhos e suas corcundas de milênios de cultura nas costas, tenham eles vinte
ou setenta anos. E algum cheiro de mofo.
Firulas sem propósito, sem proposta, fogo brando, dirão. A eles talvez não importe o que estamos
falando. Mas a nós importa, assim como a quem mais se interessa pela distração
adolescente e pela ingenuidade declarada. Pois carregamos uma herança, talvez
desde a baixa modernidade, uma herança de uma sociedade em crise. Crise disso,
crise daquilo. E enquanto nos debatemos, as telas de computadores e TVs
pasteurizam Macabéa, Riobaldo, álvaro
de Campos, Manu Bandeira e Marionaíma. E vêm nos falar que deixemos de criancice?
Seria interessante abrir mão da poesia que é chamada de poesia só porque querem
chamá-la poesia? Ou da poesia de subgêneros e subclasses publicadas a esmo em
pastas e links na internet? Convivência de sorrisos amarelos. De samba bom,
samba ruim. Do poeta eternamente em crise porque sofreu bulling e não sabia o
que era isso. A poesia precisa se libertar das neuroses e ser menos egoica
querendo ser heroica. Precisa ser voz de quem a tem como uma forma de vida e
como criação desta, sem forçação, ou pseudagem, sem ser através de intervenções
obsoletas em chiqueiros estudantis, levantando vários exemplares do deus do
labirinto com palavras de ordem, compilando os melhores comentários do
companheiro Acácio greatest hits. Poesia manifesto é caô pra liberdade, mas
precisa-se dela em momentos de abismo. Não é se colocar em zona de conforto por
vaidade artística, mas por saúde e paixão. Tirar a poesia da doença, poesia fazendo
hemodiálise, mas permitir a poesia de influência e angústia freudiana, sem
aspas, que se permite a calóricos adjetivos. Por que não¿ Estamos no limbo à
caça das palavras, não é mesmo¿ A poesia que enfia só a cabecinha e fecha tudo
em três vezes sem entrada. Geral segue sua nau. Criação de filhos monstruosos. Poesia
como criação de imagens sem embasamento teórico, sem socar a teoria na poesia. Pelo
poeta sem calmantes e leviandade intelectual, pelo poeta clichê-boêmio, que tem
o direito de ir pra seu castelo emendar alexandrinos pra posteridade, pois uma
hora ele desce de lá. Em proveito do poeta filósofo letrado desde criança,
sempre são danadinhos e espertos esses; o poeta modernete, o poeta do rap, o
deleuzeano, o roseano, a claricete, o camelete, o loser, o mano, um monte de
zumbis da Ana Cristina César caminhando pelos corredores, o poeta do grafite no
muro da escola e os sérios e respeitosos que discutem em reuniões
exclusivíssimas. Com todos a gente aprende alguma coisa, embora torcemos o bico
com uma atitude ou outra, uma rima pobre ali ou uma disritmia acolá. Poesia concreta?
De pau a pique. Cheia de goteiras. Poesia furo pra tudo quanto é lado. Quando
um autor encarna na pele alheia e faz daquele poeta sair emulando deus e o povo,
digo, emulando os autores, eles que estavam mortos desde que declaram sua
morte, mas aparece hora ou outra em vídeos duvidosos afirmados pelo fantástico.
Sem medo das apóstrofes, o poeta não se reprimirá, mesmo sem saber as
respostas, mesmo sem saber direito o que é poesia, a escola do mundo os
ensinará, nossas mães estavam certas. A persistência também ensina, o trabalho,
a transpiração e as inspirações que, igualmente, é importante não desacreditar
delas enquanto marcas deixadas diariamente em nosso corpo. Mas a convivência
entre tudo jamais deve ser pacífica e de mão beijada. Palavras como máquinas de
guerra. Uma anarquiazinha não dói. Poesia, meu caro, é arte injusta e cruel,
assim como o teatro, assim como a música, injustas artes em que todos acham que
podem fazer. Pela poesia servente de pedreiro, que trabalha e observa o
companheiro. Aprende a mexer na massa, manejar as ferramentas, calcular
precisões sem intenções arquitetônicas. Poesia pra se odiar Fernando Pessoa e
deixar a sofisticação cabralina pra depois, sem precisar queimá-los em praça
pública. Poesia também caixa de brinquedos. Poesia que toca Raul, toca
Faulhaber, Tafuri, Basílio, Augusto, Fonseca, Neto e Leocárdio. A poesia é
mara, o poeta é belza, coisas que inventamos. Por todos aqueles que beberam
uísque com gelo da ponta do iceberg, todos aqueles que conheceram o segredo da
Jurema, a cal de Rebeca e o pau do índio. Contra corrente da conta corrente
cartesiana e mal paga. Contra esses comportamentos que nos fazem pender para as
coisinhas, as fofoquinhas e os risinhos, a mediocridade das disputas paroquiais
na busca pelas melecas de ouro dos poetas federais. Cara de paisagem pra
discutir essa linguística dura, essa ciência que nos chama e pedimos só mais
cinco minutos de sono. Preferimos uma ode a quatro mãos nos encontros tediosos,
uma anti-ode solitária cagada após o big brother, três ou quatro poemas-piada
(na verdade, muitos), uma epopeia sem tema, dois sonetos rimados no fundo da
gaveta e um de verso livre aspirante a Claro Enigma. Poesia em processo, poesia
em formação. Devir, de-vir . Que não debulha dicionários em busca da melhor
opção. Poetas-Chico sem canção. Ou que rimam amor e dor na cara dura sem se
tornar poesia xexelenta, dos poetas que leem um livro e ficam se achando na
comunidade e nos fóruns de discussão. A favor da poesia panfleto, dessas de
explodir a ilha de Manhattam ao som de Rage Against the Machine. Poesia
não-sei-nem-o-que-é-que-tá-acontecendo-lá-fora-e-não-me-venham-com-esse-papo-de-alienação.
Poesia pra beijar a mão do crítico cinzento e dizer que se ele falar bem do
nosso livro nos sentiremos na obrigação de não recomendá-lo a ninguém. Nem o
crítico nem nosso livro. Poesia fetiche. Ter o livro impresso em casa e gritar:
é meu!
Poesia
palavra
Poesia
deslocada
Poesia
mutilada
Poesia
outro
Poesia
esmola
Poesia
deixou
Poesia
hora
Poesia
século
Poesia quando abaixamos a
tevê e continuamos ouvindo a música da novela no vizinho. Poesia saiu do estado
é outro país. Poesia virou a casaca, pegou birra, uó! Poesia que só hoje bateu
o recorde esperado para o mês. Poesia com margem de erro de dois pontos
percentuais para mais ou para menos. Poesia que antropofagiza os mortos por
enchentes entrevistados no jornal nacional. Poesia que, por uma questão ética,
politiza a imagem do homem torturado na faixa branca da bandeira, com todo o
terror dessa imagem, e denuncia a tinta no mesmo homem a fim de que comece o
carnaval. Poesia que não vai à missa do fulano na quarta-feira só para aqueles
que deus deixou entrar nas igrejas. Poesia anti-gemido inefável. Anti-espírito.
Anti-luz. Anti-vento só por ventar. Anti-canto gregoriano que parece ter vindo
do quinto dos infernos. Poesia que fomenta ódio à tentativa de ódio ao ódio à
poesia. Poesia que assume ser estilo de época e poesia que assume ser equívoco
de época. Subproduto da primeira contracultura com orgulho de bater no peito,
aquela romântica! Poesia provisória, claro. Pra se fazer agora e rasgar amanhã,
ou pra se guardar no fundo da gaveta e só tirar quando nos esquecermos dela e,
aí sim, ela se tornar poesia potente. Pra acreditar piamente no que diz sem ter
que pensar em qualquer justificativa que torne a poesia boa ou ruim, pra
esfregar na cara da mocinha de nariz em pé, mas com ternura e perdão, feito um
doce bárbaro. Pra terminar o verso e mandar pr’O Poeta, pra ler no Eco e
massagear o ego, pra ser musicado por Edson Leão, pra ser desdobrado por André
Monteiro e pra ser indicado pelas Scher. Assim fazemos poesia. Menos
aborrecimento, mais amizade. Por escolha e por imanência. Mas com inclinações
pra Álvares de Azevedo, Rimbaud, Verlaine ou Jovita. Mesmo que depois abandonemos
essa forma, cresçamos enfim, aprendamos alguma coisa com os sabichões, deixemos
de ser camelos e passemos a leões ou crianças, com a alegria inocente e a mais
viva das poesias, sem medo de morrer aos vinte e sete ou nos tornar nossos
próprios heróis que não morrerão de overdose.
Juiz de Fora, Junho
de 2011.